Balada da Serra dos Candeeiros

Mandaram-me um poema. Ontem disseram que o iam fazer e hoje lá estava ele na caixa do correio, num bonito sobrescrito azul e com endereço desenhado a tinta permanente.
Não sei a que devo tal ventura, que nada fiz para o merecer, mas as surpresas boas são assim, surpresas.

É a balada de um pretérito presente, com uma serra de luz, ventos de mar e pedras de cal, que me levou até às minhas serras e às minhas pedras. Por ela espreitei a outra serra que também brilha à noite, com a luz das estrelas, e a que pára os ventos do mar para nos dar uma viagem boa. E tal como estas, as pedras do meu sítio também têm cal e são generosas como um corpo que se vai deixando moldar. Andam por longe as minhas pedras sem veios. Foram levadas até onde buril e picareta delicadamente as abriram para mostrar os seus segredos. Reza a lenda que o Convento em Mafra nasceu destas pedras, duras e macias ao mesmo tempo, carregadas até lá em cortejos de carros de bois.

Eu e o autor deste poema pouco sabemos um do outro, para além da geografia que nos criou.
A medo, porque não tenho casa digna para os seus escritos, que conheço daqui e onde a encadernação é de carneira fina e não de papel prensado como esta, perguntei-lhe se podia publicar. Com a resposta chegou outro poema. Está guardado, que em casa de Deus também há governo.

José do Carmo Francisco, desculpe o pó, a roupa suja pelo chão e a loiça por lavar, mas entre e esteja à vontade. O café, pelo menos, é quente e forte, e posso servir-lho enquanto oiço mais uma vez a sua balada, onde também encontrei o meu lá atrás.


Balada da Serra dos Candeeiros

Grande parte da minha vida
Feita de paz e sem guerra
Foi numa casa construída
Com pedras daquela serra (Mote)

Na Serra dos Candeeiros
Parava o vento do mar
Eram lentos os carreiros
Com os olhos a cantar

Traziam pedras gigantes
Para a mão dos britadores
Fazer em poucos instantes
As pedras dos construtores

Os pedreiros sujos de cal
A pegar no fio de prumo
Que traça numa vertical
Lugar do fogo e do fumo

Sem desenhos ou papéis
Nascia a planta dum lar
Quatro canas dois cordéis
São os limites dum lugar

Na Serra dos Candeeiros
O azeite era o mais puro
Os ventos tão verdadeiros
A cantar por sobre o muro

Vinha a água das cisternas
Sempre boa e sempre fria
Sem as técnicas modernas
A limpeza era uma enguia

Vinha o leite já fervido
Vinha o queijo saboroso
O dia era mais comprido
Tudo era mais vagaroso

A pedra que me defende
Do Verão e do Inverno
Não se paga nem se vende
É um valor forte e eterno.

José do Carmo Francisco

4 comentários:

Anônimo disse...

É um prazer fazer parte da mobília. Não há dúvida que somos mais «geografia» que «história». Obrigado pelo espaço disponibilizado.

Teresa disse...

De nada, que quem agradece sou eu. Tenho todo o gosto em chegar a mobília para o lado e armar o baile.
(e ainda fiquei com um na manga, que o que é bom tem de ser tenteado...)

E geografia não é história também? E as nossas estórias têm, pelo menos, muitas luzes em comum.

Comendador Antunes de Burnay disse...

Era só para dizer que foi das coisas mais bonitas que vi (li) na blogosfera. E sou eu quem o diz, não é nenhum alter-ego que o diz por mim.

Teresa disse...

ai comendador,que se não fossem os sais tinha-me dado um fanico que vê-lo por aqui e com palavras doces é emoção demais.

Obrigada em nome do JCF.